segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Sobrevivente da II Guerra Mundial conta como a música lhe ajudou a superar as perdas e recomeçar uma nova vida no Brasil.

Por Marcos Santos
Foto: Marcos Santos

Sarah Lewin nasceu na Polônia em 1926, mas, viveu no país até o terceiro ano de vida. Passou a infância e adolescência na Bélgica. Aos seis anos ela conhece uma vizinha que tinha um piano no qual a filha estudava e, a partir daí a menina Sarah começa a se interessar pela música, porém, a família sem condições financeiras não tinha como investir na criança. Entretanto, sua vizinha percebendo o dom da pequena, a matriculou para ter  aulas de piano  juntas, ela e a filha. Sua família aceitou a ajuda daquela vizinha que pagava as aulas para a menina.  Aos onze anos, já conhecendo bem de música entrou para o conservatório musical no qual tinha aulas de terças e quintas com a professora Madame Du Pont. Aos domingos se reunia com os alunos no anfiteatro da cidade de Liége para acompanhar os concertos cujos repertórios eram escolhidos dos clássicos de Baah, Beethoven, Frédéric Chopin entre outros. Porém, o sonho de ser concertista foi interrompido pela guerra em meados da década de 1940. A partir daquela data a vida da adolescente Sarah se resumiu em fugas para tentar sobreviver do terrível massacre que chocou o mundo. De família judia, aos  14 anos teve que imigrar forçadamente para Marseille na França com a família, parentes e vizinhos por causa da invasão dos soldados alemães. Apesar de o local ter sido construído pelos franceses para abrigar os judeus refugiados, o ambiente era hostil e, portanto, as condições de vida eram extremamente precárias: sem saneamento básico, alimentação e infra-estrutura totalmente inadequadas e desumanas.  
Foto reprodução: Google
A Segunda Guerra iniciou-se, em setembro de 1939 e foi até 1945. O país escolhido para a invasão foi à Polônia pela Alemanha nazista comandada por Adolf Hitler e, de acordo com registros, esse trágico e desumano acontecimento deixou mais de seis milhões de judeus mortos, dos quais, amigos e parentes de Sarah Lewin-88 anos, levados para os campos de concentração fazem parte dessa terrível estatística do terror. O Holocausto, como ficou conhecido este horrendo evento, até hoje serve de inspiração para grandes produções hollywoodianas e literatura como: A menina que roubava livros, O pianista, O menino do pijama listrado, Hitler, Um sinal de esperança, O grande ditador, entre outros. Dona Sarah conta nesta entrevista realizada pelo jornalista Marcos Santos como conseguiu superar os terríveis momentos de dor ao ver suas amigas de infância desaparecerem da noite pro dia sem nenhuma explicação. Conta também do sumiço do pai que fora levado para campos de concentração com a promessa de que iria trabalhar na França para o exército de Hitler, porém, após anos desaparecido, sua mãe recebe atestado de óbito dando conta de que ele havia morrido num numa câmara de gás. Confira essa emocionanate entrevista.




Foto: Marcos Santos
Dona Sarah Lewin exibe livro preferido de Literatura Francesa.

Jornalismo.com-  Quando e como começou a guerra para vocês?

Sarah Lewin- Eu já era adolescente e na madrugada do dia 10 de maio de 1940 ,  acordei assustada  e vi  as  luzes da casa  todas acesas  e não entendi  nada. Porém, pensei que já estava na hora de levantar para ir à escola.  Minha mãe foi até o meu quarto,  desesperada e disse: levanta rápido!  Nós vamos sair de casa porque o exército de Hitler está vindo invadir a BélgicaJá arrumei as malas.  Não imaginávamos que a guerra pudesse chegar naquela cidade. Ouvimos rumores da guerra, porém estávamos despreocupados achando que não ia chegar até a cidade onde estávamos.

Jornalismo.com - Como foi que vocês conseguiram fugir dos soldados?

Sarah Lewin – Cada um pegou uma mala, fechamos a casa. Eu, minha mãe e meu  pai fugimos pelo mato até chegar à estação do trem.  A estação já estava lotada de judeus e não judeus e, no meio do tumulto conseguimos embarcar num vagão de cargas. Fomos levados para um campo de refugiados em Marseille na França já na fronteira com a  Espanha. Lá ficamos nove meses em campos de refugiados vivendo da pior  maneira possível. Fiquei muito doente e pra não morrer, meu pai ficou sabendo que a vida voltara ao normal na Bélgica e então, resolveu voltar.

Jornalismo.com :  Com as fronteiras totalmente cercadas pelo exército de Hitler, como  vocês conseguiram voltar?

Sarah Lewin: Meu pai pagou uma pessoa para nos atravessar escondidos pelo mato, porque os soldados cercaram todas as fronteiras, porém, os alemães já sabiam desse atalho e nos pegaram. Passamos a noite presos no quartel e pela manhã, fomos obrigados a voltar para o campo de refugiados em Marseille, entretanto, nos deixaram na fronteira próximos do campo. Meu pai ainda tinha algum dinheiro e novamente, pagou outra pessoa para nos atravessar. Finalmente, conseguimos fugir e chegamos em casa as 23h.

Jornalismo.com: A casa estava revirada ou destruída quando chegaram?

Sarah Lewin: Estava tudo do mesmo jeito que havíamos deixado. Os vizinhos cuidaram das nossas coisas. Então a nossa vida parecia ter voltado ao normal, meu pai voltou a trabalhar na mesma metalúrgica de antes.  Tudo parecia estar tranqüilo, porém, um belo dia, os alemães foram na minha casa e entregaram uma carta ao meu pai dizendo que todo chefe de família judeu que aceitasse trabalhar na França para os alemães por três meses, além de receber salário, eles deixariam as famílias em paz.  Meu pai acreditou e aceitou a proposta.  Mas, três meses se passaram e nunca mais tivemos notícia dele.  Depois de algum tempo descobrimos que fomos enganados. Meu pai foi levado para a Alemanha e morto em um campo de concentração.

Jornalismo.com: Como ficou a vida de vocês depois desse triste acontecimento?

Sarah Lewin: Nossa vida ficou muito difícil e complicada. Nós éramos obrigadas como todo judeu, a usar um broche em formato de estrela de Davi como identificação.  Quem não usava era morto pelos soldados.  Minha professora de piano com medo de acontecer alguma coisa comigo, achou melhor eu não ir mais à casa dela porque os soldados poderiam me prender a qualquer momento.  Ela sabia do perigo que eu estava correndo, até porque, tinha dois filhos que foram alistados no exército alemão e voltaram da guerra muito feridos.  Algum tempo depois enquanto estávamos dormindo, os soldados alemães chegaram á minha casa fortemente armados com metralhadoras e bateram na porta violentamente. Assustadas, nos arrumamos rápido e minha mãe abriu a porta e, já sabia que seríamos levadas. As malas já ficavam  prontas. Eles queriam levar também a filha da vizinha que sempre dormia em casa, porém, ela era italiana e então os soldados a deixaram ir.

Jornalismo.com: Para onde vocês foram levadas?

Sarah Lewin: Fomos levadas para um quartel próximo ao bairro onde morávamos. Passamos a noite em pé juntas com outras a famílias de judeus que já estavam lá com suas malinhas aguardando o seu destino cruel. Nós, e várias pessoas recebemos uma carta que, supostamente dava direito a trabalhar nas fábricas de munição. No outro dia foi feita a seleção dos que tinham a carta e dos que não tinham.  As pessoas que tinham a carta puderam voltar às suas casas, mas, quem não tinha foi levado direto para a câmara de gás.  Aquela carta na verdade não era um encaminhamento para trabalhar e sim uma farsa para para não chamar  a atenção dos que seriam mortos.  Depois daquele triste dia, nunca mais vi minhas amigas e seus familiares. Passadas duas semanas, eles voltaram para nos prender, mas conseguimos fugir antes. Ficamos perambulando pela cidade e, um militante da resistência belga contra os alemães se aproximou enquanto lanchávamos em um bar. Pensamos ser um soldado alemão, porém, ele se identificou  e nos abrigou em sua casa. Ali passamos a noite.  No dia seguinte ele nos levou à um esconderijo perto de onde morávamos nos fundos da casa de um casal de idosos.  Minha mãe aproveitou e foi até a minha residência pegar alguma coisa, mas chegando lá a casa estava toda revirada e vazia.  Até o meu piano que meu pai havia comprado com todo sacrifício, eles retiraram pela janela. Levaram tudo. Na edícula onde ficamos, além de nós, esse casal de idosos abrigou outros judeus. Lá, estávamos seguros e os soldados jamais desconfiariam que tivesse povo judeu ali.

Jornalismo.com: Por quanto tempo a senhora ficou escondida naquela edícula?

Sarah Lewin – Ficamos na casinha dos idosos até terminar a guerra, aproximadamente dois anos. Passamos por muitas necessidades e revoltada com aquela situação resolvi ser uma militante belga e me juntei a eles.  Depois, eu e minha mãe tivemos de enfrentar outra guerra: os traumas e fantasmas da guerra me deixaram com sérios problemas emocionais e psicológicos. Eu não conseguia dormir sossegada porque pensava nas minhas amigas, meu pai, e acordava no meio da noite gritando e muito assustada. Minha mãe mandava eu parar de gritar senão ia incomodar os vizinhos.

Jornalismo.com: Quando finalmente a jovem Sarah pôde sentir que a guerra havia acabado definitivamente,  fora e dentro dela?


Sarah Lewin: Muito difícil achar uma resposta, mas, possivelmente foi quando eu casei. Meu marido resolveu vir para o Brasil com medo de estourar outra guerra. Eu não quis sair da Bélgica porque não conhecia nada do Brasil. Só ouvia falar do Rio de Janeiro por causa da Carmem Miranda (risadas). Para mim só existia essa cidade. Não sabia que existia São Paulo, mas mesmo sem concordar muito, partimos. Eu já tinha meus dois filhos ainda pequenos e partimos para cá.

Jornalismo.com: Qual foi a reação da senhora quando chegou ao Brasil?

Sarah Lewin: Foi muito estranho, não sabíamos nada do idioma e muito menos aonde íamos morar. Chegamos ao Brasil em dezembro de 1956. Eu, meu marido e meus dois filhos: Daniel (4) e Gabriel de um ano e seis meses.  Minha mãe só  veio um ano depois.  Viemos de navio até o porto de Santos e depois trazidos de trem até o bairro do Bom Retiro no centro de São Paulo porque sabíamos que lá  havia muitos judeus. Passamos a noite em uma pensão cheia de pulgas. Daniel ficou doente e com o corpo todo ferido das mordidas das pulgas e gastamos o pouco do dinheiro que havíamos trazido, com o tratamento que durou seis meses.  Passamos por muitas dificuldades, doenças e até fome.  Pra ajudar o meu marido, eu comecei  vender roupas para um judeu  de porta em porta, mesmo sem saber falar português, infelizmente, levei muito calote.  Meu marido conseguiu emprego de vendedor de livros na Livraria Britânica e as coisas começaram há melhorar um pouco e até conseguimos alugar uma casa.

Jornalismo.com: Quando foi que o piano voltou a fazer parte da sua vida?

Sarah Lewin: Quando minha mãe veio morar conosco. Ela nos ajudou a comprar uma casa com o dinheiro que recebeu do governo da Bélgica pela morte do meu pai. Daí, parei de vender roupas e coloquei um anuncio no jornal para dar aulas de piano e ajudar o meu marido pagar a casa porque o dinheiro que minha mãe trouxe só deu para dar a entrada. Minha primeira aluna era francesa e me ensinou falar português em troca das aulas de piano. O piano era alugado e  logo os alunos foram chegando. Porém, um belo dia enquanto eu dava aula, recebi a visita de um fiscal da Ordem dos Músicos do Brasil. Minha vizinha havia me denunciado e tive de pagar multa por não ter a carteirinha.Eu nem sabia disso, mas regularizei a minha situação e me filiei à OMB e ao sindicato em 1966.  E continuei dando aula. Consegui comprar esse piano o qual já estou com ele há quase 50 anos.  As aulas começavam as 08h e iam até as 18h. Às vezes eu não parava nem para almoçar.  Quando tudo parecia estar indo tudo bem, meu marido ficou muito doente e teve de ser operado às pressas  de uma grave infecção na bexiga. Devido a doença, ele começou a faltar muito ao trabalho e  foi mandado embora da livraria Britânica. Daí,  a nossa vida e a situação financeira piorou e tivemos que vender a casa. Com o seu estado emocional super abalado e as  dificuldades financeiras, a doença do meu marido voltou e não teve mais jeito. Morreu.  

Jornalismo.com: Sem o seu marido e endividada, como a senhora conseguiu sair dessa?

Sarah Lewin: Nessa época o Daniel já era casado e o Gabriel não, mas trabalhava e me ajudou muito, além da minha mãe também, que recebia uma aposentadoria da Bélgica todo mês e me dava o dinheiro para pagar as contas.  Após seis anos da morte do meu marido recebi outro golpe do destino: minha mãe nos deixou vítima de uma anemia crônica que evolui, provocando uma severa pneumonia e ela não resistiu, já que naquela época a medicina não era tão avançada.  Foi o momento mais difícil da minha vida porque eu e minha mãe éramos muito apegadas.  Era ela que me dava forças. Ela me ajudou a superar muitas dificuldades. Ela era tudo pra mim. Eu fiquei sem chão e foi muito difícil superar a perda e, até hoje eu sinto muita falta dela.  Já se passaram trinta anos e confesso que, se não fosse o meu piano, talvez eu não estaria mais aqui.  A música se tornou a minha razão de viver.
Foto: Marcos Santos
Sarah Lewin e maestro Aluízio Pontes posam para foto.

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